sábado, dezembro 17, 2016

Vender o corpo

Deixarei minha vida miserável, venderei meu corpo.
Venderei apenas uma vez, não mais que isso. Somente o corpo, minha alma não está a venda nem será entregue de brinde a quem comprá-lo. Separá-la-ei completamente do meu corpo e venderei essa carcaça que me obriga estar entre os vivos. Não deixarei apenas minha vida miserável, deixarei minha vida por inteiro e partirei para outra livre leve e solta. Será um péssimo negócio, pois o que sobrará de mim não tirará nenhum proveito do suposto dinheiro que receberei.
O que as pessoas fazem com os corpos que não são delas originalmente? Atrocidades das mais perversas e horrorosas, nem queira saber. Mas se enjoam quando o corpo alheio esfria… ou não. Esses últimos são os mais infelizes.
Enfim, cedo ou tarde meu comprador chegará a conclusão que meu corpo perdeu a utilidade, já pode ser dispensado, ir para o lixo. Nessa hora, se meu comprador for um bom negociante, é quando ele obterá mais lucro:
Pedirá para um tecelão fazer um pequeno e resistente chicote com meus cabelos, e com esse apetrecho dará asas a sua sórdida imaginação quando resolver adquirir outros corpos.
Minha pele será cuidadosamente retalhada e vendida a pessoas que sofreram queimaduras graves.
Venderá minhas córneas para quem sofre de catarata. Meu ponto de vista será inútil.
A gordura do meu corpo será vendida para fábrica de sabonetes de luxo.
Meus pulmões de não fumante serão vendidos com ressalvas, pois quem mora em metrópole não consegue manter um pulmão muito limpo sob tanta poluição aérea. Entretanto o novo fôlego será garantido.
Meu coração será vendido a um desesperado qualquer que nunca pensará em suicídio. O feliz comprador amará a vida com todo seu ardor.
Meu fígado abstêmio também será vendido com ressalvas. Não tem gordura porém foi muito utilizado para metabolizar remédios. Assim como os pulmões, receberá a etiqueta de eficiente.
Meu pâncreas será vendido a um diabético alcoólatra, que meses depois reclamará que a aquisição não mudou sua vida por muito tempo.
Meus rins serão vendidos a preço de ouro, por funcionarem tão bem.
Meu útero saudável terá um preço acima do mercado. Será vendido a uma mulher desesperada para ser mãe que não ama nenhuma criança o suficiente para adotá-la.
Minha medula óssea não será vendida, essa parte do meu corpo já está empenhada em doação.
Meu sangue só tem utilidade se colhido com o corpo ainda quente, portanto não poderá ser vendido. Minhas fezes podem ser conservadas para fazer implante durante seis horas após colhidas naturalmente. Porém num corpo frio, fezes e sangue são lixo.
Meu cérebro ninguém vai querer. Inteligência artificial é mais barata, abundante e eficaz. Sem contar que ninguém precisa saber muito para viver tranquilamente.
O que sobrar meu comprador queimará, moerá e venderá como adubo.
Emfim pó.

“Que corpo é esse que já não se aguenta?
Que resiste ao limiar
Que desaba sobre si
Músculos e ossos
Poros e narinas
Olhos e joelhos
Seios, costas, cataratas
Suas torres de vigia
Que corpo é esse?
Que pulsa, escuta,
Expulsa, abraça
Expele, comporta, adequa
Contém, desarruma!
O corpo ocupa!
O corpo não é culpa
O corpo a culpa o espaço
Que corpo é esse?
Que protege, reage
Que é origem
Que é passagem
Que corpo é esse que já não se aguenta?
E se esgota
E não se resgata”

O corpo, a culpa, o espaço; O Teatro Mágico

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